O PARECER DO ADMINISTRADOR JUDICIAL PROVISÓRIO NO PER
No âmbito do processo especial de revitalização (PER) – procedimento especial introduzido no Código da Insolvência e de Recuperação de Empresas (CIRE), nos artigos 17º-A a 17º-J – o administrador judicial provisório (AJP) tem a responsabilidade, entre outras, de elaborar dois pareceres com propósitos e finalidades distintas.
Estes dois pareceres são mutuamente exclusivos, ou seja, não podem ocorrer simultaneamente no mesmo processo. Consoante o caso, o AJP apresenta um de dois pareceres, cada um com premissas e objetivos diferentes.
No caso em que o plano de recuperação proposto pela empresa devedora for rejeitado pelos credores ou, aprovado, o juiz decida pela sua não homologação, o AJP emite um parecer sobre a situação de insolvência da empresa. Se o plano for aprovado pelos credores, o AJP emite o seu parecer sobre a viabilidade da empresa.
Todavia, existe a possibilidade processual de o AJP apresentar o parecer sobre a viabilidade da empresa e caso o juiz decida pela não homologação do plano, determinar a apresentação do parecer sobre a situação de insolvência.
O parecer sobre a situação de insolvência da empresa
O parecer sobre a situação de insolvência da empresa que recorreu ao PER, é de responsabilidade exclusiva e competência do AJP, conforme estabelecido no artigo 17º-G, n.º 3 do CIRE, e é emitido caso o plano de recuperação seja rejeitado pelos credores após a conclusão do processo negocial ou se o plano não for homologado pelo tribunal.
De acordo com o artigo 17º-G, n.º 1 do CIRE, a rejeição do plano pelos credores pode ocorrer em três situações: 1) prematuramente, caso a maioria dos credores ou a própria empresa optem pela conclusão antecipada do processo negocial; 2) se o prazo de negociação for ultrapassado; 3) se decorrido o período de votação, os credores rejeitarem o plano proposto.
Para além disso, o AJP também tem o dever de emitir o parecer caso o tribunal decida não homologar o plano que tenha sido previamente aprovado pelos credores, conforme estipulado no artigo 17º-F, n.º 9 do CIRE.
Como parte integrante da legislação original que dotou o CIRE com o instrumento de recuperação conhecido como processo especial de revitalização, que entrou em vigor em 20 de Maio de 2012 (Lei n.º 16/2012, de 20/04), este parecer que o AJP tem o dever de apresentar, permanece como um documento de apresentação obrigatória nos autos, mesmo após a última alteração legislativa que entrou em vigor a 11 de Abril de 2022.
O parecer elaborado pelo AJP, contém a sua opinião sobre se a empresa está ou não em situação de insolvência, o qual, previamente à sua emissão, deverá ouvir os credores e a devedora. O documento produzido pelo AJP deve analisar e concluir se algum dos factos que se encontram elencados no artigo 20º, n.º 1 do CIRE se verificam e basear o seu parecer nessas constatações factuais.
Neste sentido, através da documentação que suporta a petição inicial (artigo 17º-C, n.º 3 do CIRE), das informações contidas nas reclamações de créditos (artigo 17º-D, n.º 2 do CIRE), do acesso à contabilidade da empresa (artigos 17º-C, n.º 5 e 33º, n.º 3, ambos do CIRE), bem como do conhecimento adquirido sobre a situação da empresa por meio dos contactos mantidos com a gerência/administração da sociedade devedora e decorrentes da fiscalização e supervisão do processo negocial, o AJP estará apto a verificar a existência dos factos listados no artigo 20º, n.º 1 do CIRE, destacando-se aqueles que são habitualmente utilizados:
1. Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
2. Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor (empresa) satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
3. Incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos: tributárias; contribuições e quotizações para a Segurança Social; dívidas emergentes de contrato de trabalho; rendas de qualquer tipo de locação (financeira/arrendamento), prestações de empréstimo garantido por hipoteca;
4. Manifesta superioridade do passivo sobre o ativo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas.
Além destes factos, podem ser utilizados os demais que constam e enriquecem o artigo 20º, n.º 1 do CIRE – mas que, salvo raras exceções, não se aplicam no contexto de empresa que se apresenta a um PER para tentar a sua recuperação. Esses factos incluem a fuga do titular da empresa ou da administração/gerência; abandono da sede ou dos estabelecimentos onde é exercida a atividade; dissipação e/ou venda apressada do ativo da empresa; constituição fictícia de créditos; insuficiência de bens penhoráveis em processos executivos; incumprimento das obrigações previstas em plano de insolvência (para recuperação).
Em suma, para uma correta elaboração e fundamentação do parecer, é suficiente que o AJP proceda à análise das reclamações de créditos recebidas, procurando verificar se a empresa deixou de pagar à grande maioria dos seus credores em relação ao volume absoluto dos seus créditos; que constate que a empresa não possui liquidez para pagar, nos últimos seis meses anteriores à apresentação ao PER, as suas obrigações fiscais, quer sejam devidas à Autoridade Tributária e Aduaneira, quer à Segurança Social; bem como se se encontram em dívida as responsabilidades perante os seus trabalhadores, ou ainda, se as prestações de empréstimos garantidos por hipoteca ou rendas de qualquer tipo de locação financeira permanecem por liquidar.
Regra geral, as informações contidas nas reclamações de créditos não impugnadas pela sociedade devedora são mais atualizadas do que a contabilidade da empresa e estão imediatamente disponíveis para o AJP desde a fase inicial do processo, pelo que são a principal fonte a ser considerada.
Para que o AJP possa concluir pela situação de insolvência da empresa, bastará que quaisquer dos factos elencados no artigo 20º, n.º1 do CIRE se verifiquem, desde que devidamente fundamentado. No entanto, o administrador judicial também tem a prerrogativa de considerar que a empresa não está em situação de insolvência, mesmo que alguns desses factos se verifiquem, devendo também, com maior rigor e assertividade, procurar justificar as razões pelo qual o preenchimento do(s) facto(s) não é(são) relevante(s) para considerar que a empresa não está em situação de insolvência.
Esta situação poderá ocorrer, por exemplo, em casos em que se perspetiva a recuperação económica e financeira no curto prazo por via de um ou mais negócios futuros ou por aumento expectável da faturação devido à conjuntura que rodeia a empresa, entrada de um investidor no capital social, entre outros cenários.
Atualmente, este parecer continua a ser de apresentação obrigatória, contudo, perdeu grande parte da sua relevância e oportunidade devido à alteração do CIRE que entrou em vigor no dia 11 de Abril de 2022 (Lei n.º 9/2022, de 11/01).
Decorre dos n.s º 5 e 6 do artigo 17º-G do CIRE, que quando o AJP conclui que a empresa está em situação de insolvência, a secretaria judicial notifica a empresa para se opor (por mero requerimento). Caso a empresa se oponha ao parecer do AJP – decorrendo da lei que a empresa não precisa de fundamentar a sua (o)posição e que o AJP (e os credores) não têm direito ao contraditório – o juiz determina o encerramento do processo.
Ora, não é despiciendo questionar o relevância e utilidade do parecer, se, quando o AJP ouvir a empresa (artigo 17º-G, n.º 3 do CIRE), esta vier dizer que entende não estar em situação de insolvência. Neste caso, atendendo ao disposto no n.º 6 da suprarreferida norma, qual é o interesse para os autos na apresentação do parecer pelo AJP?
Para além de ser um documento para memória futura, a conveniência e vantagem para o PER na fase processual em que se encontra nesse momento, é, convenhamos, praticamente inexistente.
O NOVO PARECER DO AJP – sobre a viabilidade do plano aprovado
Este novo parecer foi introduzido pela alteração legislativa ao CIRE, que entrou em vigor no dia 11 de Abril de 2022 (Lei n.º 9/2022, de 11/01), visando reforçar a eficiência do processo de recuperação e o esclarecimento de certos aspetos do regime.
O parecer sobre a viabilidade do plano aprovado é elaborado e apresentado pelo AJP e consiste, por definição, numa opinião fundamentada sobre se o plano de recuperação apresenta perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a sua viabilidade (artigo 17º-F, n.ºs 4 e 6 do CIRE).
O AJP deve proceder à apresentação deste parecer quando o plano de recuperação apresentado pela empresa tenha sido aprovado pelos credores, seja por unanimidade (n.º 4 do artigo 17º-F), ou pelas maiorias mencionadas no n.º 5 da referida norma.
Para além de ser uma peça relevante para os autos e que pode ser utilizado pelas partes em sede de recurso, o parecer destina-se a servir como suporte para a decisão de homologação do plano pelo juiz, conforme previsto no n.º 7, uma vez que, para além de outros pressupostos, o juiz também deve aferir e avaliar se o plano de recuperação apresenta perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a sua viabilidade, conforme dispõe a alínea g) do referido n.º 7.
Para tentar responder à definição e fundamentar o seu parecer, o AJP deve recorrer à documentação presente nos autos, especialmente ao próprio plano de recuperação proposto pela empresa e aprovado pelos credores.
De acordo com as alíneas f) a j) do n.º 1 do artigo 17º-F do CIRE, o plano de recuperação deverá conter as seguintes informações:
· As medidas de recuperação propostas e sua duração;
· As consequências do plano no quadro de trabalhadores;
· Os fluxos financeiros previsionais (plano de investimentos, demonstração de fluxos de caixa, demonstração de resultados e balanço);
· Informações e explicações sobre novos financiamentos previstos no plano;
· Exposição de motivos em que a empresa explique as razões pelas quais o plano evita a insolvência e garante a sua viabilidade.
Baseando a sua análise técnica nos considerandos do plano, nas medidas a implementar pela empresa, tanto em termos do aumento dos rendimentos (receitas) quanto na redução dos gastos (despesas) e com base na observação dos mapas previsionais resultantes da aplicação dessas medidas, o AJP deve efetuar um juízo de prognose e procurar responder à questão de saber se o plano aprovado apresenta perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa e, em consequência, garantir a sua viabilidade.
Existem várias medidas que podem ser implementadas para recuperar uma empresa em dificuldades e que são frequentemente incluídas num plano de recuperação.
Essas medidas incluem:
a) Corte de despesas, identificando áreas onde os gastos podem ser reduzidos ou eliminados. Estas medidas poderão incluir a redução do quadro de pessoal, a renegociação de contratos, a eliminação de despesas desnecessárias relacionadas com os fornecimentos e serviços externos (...);
b) Revisão da estrutura do passivo, através da negociação com os credores para estabelecer condições de pagamento mais favoráveis, como períodos de carência, ampliação dos prazos de pagamento, redução de juros e perdão parcial da dívida;
c) Venda de ativos não essenciais, identificando ativos que possam ser vendidos para gerar recursos financeiros, que podem ser direcionados para o pagamento antecipado de créditos ou para investimento no negócio principal;
d) Captação de novos recursos, através da busca de novas fontes de financiamento, como empréstimos, entrada de novos investidores que permitam o apport de novo capital de investimento e/ou de estabelecimento de parcerias estratégicas para apoiar a recuperação e financiar as atividades operacionais;
e) Reorganização operacional e monotorização contínua, com o objetivo de avaliar e reestruturar as operações da empresa, identificando áreas ineficientes ou não rentáveis e implementando medidas para aumentar a eficiência, reduzir custos e melhorar a produtividade. Acompanhamento da implementação e execução do plano, monitorizando os resultados obtidos.
Em resumo, o objetivo é aumentar as receitas e reduzir os custos, por forma a gerar um cash-flow positivo e aumentar a disponibilidade de recursos financeiros na tesouraria.
Ao analisar os mapas previsionais contidos no plano, é importante prestar atenção às variações não exequíveis, ou seja, às projeções que não são realizáveis ou realistas.
O Administrador Judicial Provisório (AJP) deverá procurar compreender e avaliar se as medidas propostas pelo plano são executáveis, ou seja, se perante a realidade factual da empresa demonstrada nas reclamações de créditos, nos mapas contabilísticos, na observação direta dos meios de produção existentes e do meio que rodeia a empresa, considera que as medidas são adequadas e viáveis na sua aplicação. Além disso, deve analisar se os gestores da empresa demonstram ter a capacidade de as executar ou de delegar, controlando os resultados obtidos e ajustando conforme os desvios e variações verificadas.
No que diz respeito à exequibilidade das previsões contidas no plano, a análise técnica do parecer deve examinar a variação dos valores históricos em relação aos previsionais. Caso existam variações anormais, o plano deverá conter uma explicação escrita para essas divergências.
Como exemplo, o AJP deve estar atento ao aumento significativo das vendas ou das prestações de serviços no futuro, sem que exista uma explicação adequada no plano que enquadre as razões desse crescimento, bem como procurar comparar entre as vendas e o prazo médio de recebimento dos clientes. Uma variação muito positiva das vendas, sem suporte e sustentação nas medidas a implementar, inquinará os valores de todos os mapas previsionais, e, certamente, comprometerá todas as expectativas de fluxos de caixa e tesouraria positiva necessárias para o pagamento dos credores.
Este tipo de análise – sobre as variações entre os valores obtidos recentemente e as projeções – também pode e deve ser aplicada aos gastos, designadamente nas rubricas de Custo das Mercadorias Vendidas e Matérias Consumidas (CMVMC), Fornecimentos e Serviços Externos (FSE), Gastos com o Pessoal, Imparidades e Provisões.
Adicionalmente, o parecer do AJP deve testar os rácios económico-financeiros em relação aos resultados dos mapas previsionais presentes no plano.
Os rácios financeiros são utilizados para analisar e avaliar a saúde financeira, a eficiência operacional e o desempenho económico de uma empresa. Estes cálculos, quando usados em combinação entre si, relacionam diferentes valores das demonstrações financeiras e fornecem informações importantes para que o AJP possa afirmar, com maior segurança, se o plano garante a viabilidade da empresa.
Os rácios são amplamente utilizados para avaliar a performance económico-financeira de uma empresa e utilizam as rubricas presentes na demostração de resultados e no balanço previsional.
Como referência, os seguintes rácios poderão ser usados pelo AJP no seu parecer.
Rendibilidade das vendas – é um indicador, em percentagem, que compara o lucro líquido com o volume de negócios da empresa. Mede o lucro obtido por cada unidade monetária vendida.
Prazo médio de recebimentos e de pagamentos – mostra qual o tempo médio necessário para receber dos clientes ou para pagar aos fornecedores.
Rendibilidade dos capitais próprios – mede a capacidade dos capitais próprios da empresa em gerar retorno financeiro aos sócios e acionistas.
Rácio de liquidez geral – evidencia em que medida as obrigações de curto prazo estão cobertas pelos ativos que podem ser convertidos em liquidez no prazo de um ano.
Rácio de endividamento – determina a percentagem de capital alheio utilizado no financiamento das atividades da empresa.
Rácio da autonomia financeira – traduz a percentagem do ativo que está a ser financiada pelos capitais próprios da entidade.
Rácio de Solvabilidade – traduz a capacidade da empresa em solver as suas dívidas, através dos capitais próprios.
Em síntese, o parecer do AJP deverá concluir, com base na análise apresentada, se os pressupostos do plano são verificáveis, se as medidas propostas são exequíveis e se os mapas financeiros apresentam variações e/ou desvios que não sejam explicados pelo plano e que, de alguma forma, deturpem os resultados previstos.
O parecer deve ser adaptado à realidade da empresa devedora e ser mais completo e abrangente, quando a atividade empresarial desenvolvida for de maior dimensão e a empresa apresentar maior complexidade. O parecer sobre a viabilidade de uma média empresa, será necessariamente mais complexo do que sobre uma microempresa.
Em nota final, considerando que o plano de recuperação já foi analisado pelos credores e recebeu a sua aprovação, tendo em especial consideração que os maiores credores são habitualmente o Estado (representado pela Autoridade Tributária e Aduaneira e pelo Instituto da Segurança Social) e as instituições financeiras, sendo que todos estes organismos aportam o conhecimento técnico das suas equipas de análise financeira para a tomada de decisão sobre o voto a emitir, o AJP deve ter presente que, seguramente, o plano de recuperação, contendo as medidas a implementar e os mapas previsionais, foi sindicado tecnicamente por todos estes elementos, e que, em caso de discordância com a opinião maioritária dos credores, as suas conclusões devem ser fundamentadas com especial atenção.
Nuno Nascimento Lemos (Administrador Judicial)
Texto da apresentação do tema na I Bienal de Direito de Vila do Conde, publicado pela editora Almedina em 2023 na obra - I Bienal de Direito de Vila do Conde - O DIREITO DA INSOLVÊNCIA À LUZ DA REFORMA DE 2022 - Coordenação Dra. Maria do Rosário Epifânio
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